Mulheres Viajantes: O Mundo ao Redor do Meu Nariz ~ por Mallê

Cresci em uma família com o dom de receber bem as pessoas. Meus pais sempre foram exímios anfitriões. Nunca houve quem dissesse que ficou constrangido ou acanhado em minha casa. Todos os que nela estiveram sentiam-se tão acolhidos quanto em suas próprias casas (às vezes mais). Aquele lugar era como um grande e caloroso abraço onde todos gostariam de voltar. Foi ali que conheci e aprendi a respeitar as diferenças, amar a diversidade, convivendo com as pessoas sem que estas precisassem deixar de ser elas mesmas para se adequarem ao local.

  Meu pai, além de viajar com as histórias de nossos hóspedes, sempre gostou de colocar os pés na estrada. Tinha dias em que me buscava na escola, dizendo à professora que eu precisava sair, e me levava com ele para alguma cidade próxima, onde ele entregava geladeiras e congeladores em seu trabalho. Lembro até hoje das músicas no toca-fitas do carro…

  Ainda assim, meu pai nunca me levou para acampar. Dizia que queria ter um filhO para levar à pescaria. Enquanto isso, eu sonhava viver aquelas aventuras de seus causos sobre a chuva e jacarés, roubando os peixes que colocavam pendurados perto de onde dormia.

  Desde muito pequena então eu quis que a estrada fosse uma constante em minha vida. Meus sonhos cresceram comigo: queria conhecer o mundo inteiro! Curiosa, precisava aprender o que as pessoas diziam em seus idiomas. Me encantava ver livros, fotografias, histórias, as antigas civilizações, monumentos… Mais tarde, ganhei uma enciclopédia onde havia uma foto do “Solitário George”, a última tartaruga gigante das Ilhas Galápagos. Aquela imagem nunca mais me saiu da cabeça! Havia uma mulher ao lado dele, tornando possível imaginar o quão enorme ele era, de fato. Tornou-se a viagem dos meus sonhos, o meu propósito, conhecer o George!

  Mas a vida tem desvios que desconhecemos. Vi meus dias serem modelados por problemas de saúde. Aos 8 anos, alguns episódios de desmaios e dificuldade de permanecer nas aulas. Aos 15, parei de estudar e de trabalhar devido a fortes dores que só foram diagnosticadas sete anos depois, quando os médicos disseram que eu havia perdido cerca de 75% da capacidade da bexiga por causa de uma cistite intersticial.

  Fiquei limitada às paredes de casa durante grande parte daquele tempo. Meus sonhos adormeceram. O que me alimentava a alma era a leitura. Em especial, Rubem Alves. Foi em seus livros que aprendi a abrir os olhos às pequenas coisas ao meu redor. Comecei a ousar aos poucos. Um dia de cada vez. Uma conquista por dia. Em seu livro “Um Mundo Num Grão de Areia”, há uma citação de William Blake:

Ver um Mundo num Grão de Areia
E um Céu numa Flor Silvestre,
Ter o Infinito na palma da sua mão
E a Eternidade numa hora.

  Por mais piegas que possa parecer, até a maior das montanhas é formada por minúsculos grãos. Você passa a dar valor ao clichê da “longa caminhada que se inicia com o primeiro passo” quando você perde a liberdade de caminhar.

  Com o nascimento do meu filho, muita coisa melhorou. Consegui voltar a estudar, passar no vestibular, ingressar na faculdade. Mas meu pequeno não se adaptou à cidade grande, e voltou a morar com meus pais no interior, até que eu me formasse.

Nos víamos pouco por causa da distância. Quando tínhamos algum tempo juntos, eu o levava às cidades vizinhas para andar pelas ruas ou nadar em rios. Me lembrava minha infância com meu pai… Começamos a colecionar destinos e memórias.

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Foto: Arquivo pessoal – Mallê

Mas a distância me trouxe outros problemas. Depressão, fobia social, síndrome do pânico. Os desmaios de quase 20 anos atrás voltaram. O diagnóstico: Transtorno de Ansiedade Generalizada. Tranquei a faculdade. Não conseguia sair de casa, ver pessoas, conversar… Passei alguns meses com meu filho.

  Um dia, assistindo a um filme, ele disse:

– Mamãe, essa coisa de mar, de praia… Isso existe de verdade?

– Existe filho.

– Ahh, mamãe… A gente não pode acreditar em tudo o que vê na TV, não!

– Eu sei, filho… Mas o mar existe! Vou te levar pra ver…

  E fomos à praia! Eu, depois de muitos anos. Ele, pela primeira vez. Eu renasci em cada um de seus sorrisos! Naquele momento, vi na realização dele o despertar dos meus sonhos. A vontade incontrolável de viajar e descobrir o universo – Wanderlust! Recomecei meu caminho.

Porto Seguro - BA
Letícia e Gilberto 

Não vou dizer que é fácil. Tem horas em que o corpo não consegue acompanhar a mente e tudo o que ela almeja. Tenho medo de gente, fortes crises de pânico, e nunca sei se o dia de amanhã será de descobertas ou de cobertas, quando nem consigo levantar da cama!

  Mas reconheço que até nesses momentos sinto o pulsar da vida. E quando tanta gente vem me questionar sobre ter ou não medo, os riscos, os perigos… Minha resposta? Rubem Alves:

  “[…] eu tenho medo. Eu sempre tive medo. Viver é lutar diariamente com o medo. Talvez esse seja o sentido da lenda de São Jorge lutando com o dragão. O dragão não morre nunca. E a batalha se repete, a cada dia. […] O medo é a presença do terrível-não-acontecido, se apossando da nossa vida. Ele poderá acontecer? Pode. Mas ainda não aconteceu nem se sabe se acontecerá. […] A pomba que por medo do gavião, se recusasse a sair do ninho, já se teria perdido no próprio ato de fugir do gavião. Porque o medo lhe teria roubado aquilo que de mais precioso existe num pássaro: o voo. Quem por medo do terrível, prefere o caminho prudente de fugir do risco, já nesse ato estará morto. Porque o medo lhe terá roubado aquilo que de mais precioso existe na vida humana: a capacidade de se arriscar para viver o que se ama. […] Quem, por causa do medo, se encolhe e rasteja, vive a morte na própria vida. Quem, a despeito do medo, toma o risco e voa, triunfa sobre a morte. Morrerá, quando a morte vier. Mas só quando ela vier. […] Viver a vida, aceitando o risco da morte: isso tem o nome de coragem. Coragem não é ausência do medo. É viver, a despeito do medo”.

(Trechos do texto “Tenho Medo…”, do livro “Um Mundo Num Grão de Areia”)

Vale das Borboletas
Vale das Borboletas, Ravena, Sabará/MG

 

Mallê é idealizadora do Projeto The World Around My Nose.
Blog: www.theworld41.wixsite.com/theworldaroundmynose

Página Facebook: www.facebook.com/namaladamalle

Instagram: @na_mala_da_malle

3 comentários em “Mulheres Viajantes: O Mundo ao Redor do Meu Nariz ~ por Mallê

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