Viajar também é resistir

 

Por Julia Antoun

Naquele setembro de 2015, quando decidimos fazer uma aventura e uma correria louca pelas estradas da Argentina, da Bolívia, do Peru e do Chile, nossas preocupações limitavam-se ao breve tempo que tínhamos para conhecer diversos sonhos e percorrer muitos quilômetros. Foram vinte dias, saindo de Buenos Aires para retornar por Buenos Aires, desenhando um torto quadrado que passasse por Córboda, Salta, o Salar de Uyuni, La Paz, Copacabana, Cuzco, Machu Picchu, Arequipa, Arica, o Atacama, Santiago e Mendoza. Os ônibus noturnos preenchiam metade das nossas hospedagens. A única forma de dar conta do projeto. Prático, mais barato, mais proveitoso, simples e aventuroso, como deve ser.

Éramos 3 moças, permeando o meio da sua segunda década, duas fazendo 26 anos em plena viagem. Professoras, estudantes e muita energia para realizar a empreitada nas férias de verão. Pagando nossas contas, recebendo apoio dos amigos e familiares em diversos graus, nada era um obstáculo para iniciarmos. Nada realmente foi. Porque não deixamos espaço para tal.

Pois não faltou gente questionando se era tudo bem irmos “sozinhas”. Ao menos da minha parte, ninguém quis ser ofensivo com isso, estava apenas preocupado. Entre sondagens do quanto pensei a respeito da viagem e perguntas sobre segurança, meus familiares foram muito insistentes, nutridos de afeto, em saber se seria seguro. Um pouco cansada, lembro de em certa medida responder “Não posso dizer que será 100% seguro,  100% seguro não existe, nem para atravessar a rua”. Mas, em momentos de maior franqueza por essas perguntas, a verdade vinha à tona: seguro para ninguém é, mas para três jovens mulheres é menos seguro. “Oh, ao menos são três, é melhor que duas, melhor que uma”.

Oh, sim, é melhor. É melhor para qualquer um em termos de segurança. Mas alguém não pode deixar de dizer “se fosse homem, tudo bem, mas menina é complicado.”. É verdade que para “menina” é mais complicado, mas este drama não estava nos nossos planos como obstáculo – embora não deixasse de merecer cuidados.

Não é possível ignorar a realidade. A violência contra a mulher está aí e cego é aquele que negar. Se isto não existisse, teria pego a minha mochila e ido para Machu Picchu alguns anos antes. Teria viajado muito mais, porque sou o tipo de pessoa que não se importa tanto de fazer as coisas sozinha. No entanto, ir muito longe me trazia insegurança enquanto mulher. E está aí um obstáculo que eu não me sentira muito confiante em ultrapassar sozinha até então, não na América Latina, não em qualquer país onde a explícita misoginia ainda vibra quase como um pilar da sua cultura (nem conto o machismo porque este está em praticamente todos os países vibrando como pilar da cultura). Mas eu sempre soube que bastava uma companhia para o ultrapassar. Porque não era sobre eu poder ou não, era sobre não me precaver. E foi fluido e natural realizar esse movimento acompanhada.

Estarmos em três foi um argumento que eu usei muito a quem perguntava sobre segurança. Mostrar que tínhamos toda a rota e método planejado também. Falar das listas de itens na mochila, das técnicas para manter as roupas organizadas, da nécessaire de remédios, dos lencinhos umedecidos para os perrengues nos entre dias de ônibus, da bota comprada para as longas caminhadas. Dos blogs de outros mochileiros, das dicas sobre as cidades dos viajantes, das análises sobre cultura, dos posts de mulheres falando que estar em grupo ajuda a manter “inconveniências” à distância. Tudo isso foi entrando como uma viagem consistentemente pensada.

Preparadas, pensadas, prontas. Viajarmos não era e nunca foi um problema, as precauções estavam tomadas e o que poderia ser um obstáculo – as possíveis caraminholas de medo por sermos mulheres embutido nas perguntas alheias – , não entrou na mente. O preparo e a união eram os nossos escudos. E para mim, aquilo deveria bastar para qualquer pessoa.

Em verdade, se não há mulheres viajando sozinhas, como poderiam as mulheres viajar sozinhas? Que mudança se prende ao tempo e a tradição? Que mudança pode ocorrer sem que ninguém esteja mostrando que ela é possível?

Às vezes é muito simples. Eu não cheguei tão longe na época, eu via com naturalidade a “permissão” (o direito) para viajar entre mulheres, independente do que a sociedade pensa. A gente não pode ignorar os riscos a mais, mas eles precisam ser corridos, ou ficamos aprisionadas pelas amarras do passado, de juízos nada empáticos e de impulsos criminosos (embora não o sejam para todos). É possível se prevenir e reduzir, mas não dá para esperar que as coisas se resolvam sozinhas. No fim, a realidade do que vai acontecer no futuro é dada para nós como se fossem um jogo de dados (embora a gente possa definir se vão ter 6 números ou 20).

Por uma boa dose de sorte e outra de prevenção, nós tivemos uma única situação de arrepiar-nos a espinha e nos manter aceleradas por boas horas em razão de sermos mulheres. Após atravessar a ponte que liga a Argentina à Bolívia, chegamos em Villazon quase à meia-noite, sem bolívares, e sem os turistas que contávamos que fariam a peregrinação conosco. Foi uma cagada imensa, mas contávamos que a rodoviária estaria aberta. Não estava. E rodamos seus arredores por boas horas, em busca de um lugar para descansar que fosse salubre. Em um dado momento, sentadas na praça tentando pensar no que faríamos, um senhor de idade boliviano, andando aos tropeços, aproximou-se de nós e disse algumas vezes, vendo que tivemos dificuldade de entender,  para tomarmos cuidado pois éramos “chicas” e tinha “gente mala” no lugar que ele estava apontando, na rua à nossa frente, o único lugar que tinha movimento àquela hora.

Ainda era o início da madrugada, então aquela insinuação de perigo maior do que o que já prevíamos deixou todas nós mais tensas, e nos empurrou para decidir não permanecer muito mais tempo na rua, independente da salubridade (quem já foi a Bolívia pode ter uma noção do que quero dizer com isso, mas só indo a Villazón e seu centrinho para entender de imediato.. Você só vai querer fazer isso se for a Uyuni depois de passar pela Argentina de ônibus, porque no mais é um lugar perfeito para se esconder do mundo). A experiência até decidirmos o que fazer é uma história à parte, mas no final das contas nada demais aconteceu conosco e chegamos a ser convidadas por bolivianos cabeludos para virar a noite num show de rock que estava rolando ali perto. E o som até que estava bacana. Mas não ficamos lá, pois precisávamos descansar (embora a sonzera rolasse solta no quartinho do hotel ao lado que ficamos. Estava bom, viu?).

Poderia ter acontecido muitas coisas naquele lugar, mas não aconteceu. Poderia não ter sido um senhorzinho gentil a nos abordar. Poderíamos não ter sido acolhidas simpaticamente pela turma do rock. Poderíamos ter surpresas nas ruas escuras que percorremos. Mas nada foi assim. Dos “e se….” nada se extrai. Apenas temor, apenas gasto de energia. Olhares, insinuações, a isso estamos acostumadas todos os dias. Melhor que não tivesse, mas, tendo, vivemos e resistimos. Falamos muito disso ao longo da viagem, especialmente na reta final, quando nos demos conta da sorte que tivéramos e questionamos o fato de chamarmos isso de “sorte”. Não deveria ser sorte não ter acontecido nenhum assédio sério. Deveria ser normal.

Era uma viagem com riscos, ok. No entanto era, principalmente, e sempre foi assim para nós, uma viagem de maravilhas. Mesmo que nossas passagens tenham sido breves pelas cidades, elas foram intensas. Os vinte dias pareceram meses. A América do Sul guarda presentes da natureza e da cultura latina que devem ser vistos e desfrutados por todos nós. Do tango em Puerto Madero de Buenos Aires ao imenso azul e branco ilusionista do Salar de Uyuni, das vibrações de paz do lago Titicaca no ano novo de Copacabana a simetria monumental e inteligência hipnótica de Machu Pichu, das pinturas divinas do Atacama a simpatia do povo de Mendonza.

Era para isso que fomos viajar. É para isso que eu penso que se viaja. Era para esse encontro com as belezas, com a diversidade, com novas culturas, com nós mesmas diante do que nos é apresentado e do que pensamos ao viver essas experiências.

Dali, senti-me segura na disposição para ir a longas distâncias sozinha. E a próxima viagem já está sendo planejada, porque encontrei nesse rolê pela América do Sul o segredo para não deixar o temor se tornar obstáculo: planejar e tentar.

 

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