Figura! Uma Figura!

 

Uma iluminada vez, conheci um britânico indiano ou indiano britânico aqui mesmo no Brasil que, quando viajava, tirava fotos de pessoas muito mais do que de paisagens. Naquele seu português cheio de sotaque, ele me mostrava as fotos e falava: “Figura! Uma figura!” Tariq, seu nome, é um cara sensacional. Tive várias conversas interessantíssimas com ele. Mostrou-me uma visão de mundo encantadora e ao mesmo tempo maliciosa. Muito sonoro, lembro do jeito que pronunciava as palavras em português e em sua língua materna. Sotaque lindo que tinha.

Após conhecer Tariq, em todas as viagens que fiz (todas!) seu “Figura! Uma Figura!” vinha-me à mente. Esse texto é não somente um grito de saudade daquela Figura!, mas uma homenagem a todas as figuras em que esbarrei por aí.  

Figura 1: Bob

Bob é a Figura! mais impactante que já encontrei quando viajava. Talvez por ter sido a primeira Figura!, talvez por ter sido minha primeira viagem sozinha.

Conheci Bob em Cuba. Estávamos hospedados no mesmo hotel em Havana. Encontramo-nos de manhã cedo quando eu, inocente, estava aguardando calmamente minha vez na fila para conseguir informações. Antes de mim, na minha frente, estava Bob, um quarentão, ou cinquentão, muito confuso que não conseguia falar uma palavra sequer de espanhol. A atendente não entendia nada de seu inglês, a comunicação não estava ocorrendo. Claro, né, observando tudo, resolvi ajudar. A atendente me viu como uma boia salvadora e simplesmente falou: “vocês estão juntos? Não? Μas é a primeira vez de vocês aqui. Vão passear juntos.” Tudo muito imperativo. A gente se olhou, achou tudo muito estranho, mas topou. Achei que fosse ficar passeando com ele somente aquele dia. Acabou que ficamos os 7 dias que tínhamos lá juntos.

Bob me ligava de manhã para tomarmos café juntos. Almoçávamos e jantávamos juntos. Viajamos juntos. Bebemos e fomos passados pra trás juntos. Bob perdeu alguns dinheiros, eu briguei algumas vezes em portunhol com os que tentavam tirar mais dele. Bob me defendia. Eu tentava proteger Bob.

Ele tinha seu sapato especial de dança. Tinha sua roupa – toda jeans – especial de noitada. Dançava como um belo dançarino iraniano e ainda arriscou me ensinar alguns passos. O lance todo era mexer os ombros. Eu só sabia mexer as cadeiras. Foi quem me apresentou a Corona, com aquela pitadinha de sal que deixa tudo mais borbulhante, e o jazz.  

Todavia não era somente a bobeira do dia a dia que fazia com que eu continuasse a sair com ele. Bob era, na verdade, um revolucionário iraniana que pedira asilo aos Estados Unidos após fugir do seu país por ter participado da Revolução do Xá. Concordando ou não com sua ideologia, Bob era história pura acontecendo na minha vida. O cara tinha uma experiência e uma perspectiva riquíssimas ao meu olhar. Era uma vida que eu desconhecia. Era um mundo todo novo que se abria para mim.

Entre conselhos como “você tem que se casar e dar a seu marido muitos filhos” e “vou te dar um tapete persa para seu bebê fazer xixi nele”, Bob me ensinava como me desvencilhar de qualquer um que quisesse me atacar portando somente uma caneta esferográfica: “é só você enfiá-la bem no meio da clavícula”. Bob me contou como sofreu por ter tido um irmão estuprado e como ele e os outros irmãos deceparam o pênis do criminoso. Contou-me sua luta para conseguir a guarda de seu único filho pois sua esposa (que não era o amor da sua vida) havia morrido e o filho estava sendo criado pelos avós. Contou-me chorando como havia sido obrigado a casar com uma mulher que não amava.

Falou-me de como foi chegar aos Estados Unidos sendo “mais um imigrante”, ir morar em um dos estados mais frios – Colorado – e ter de dormir no trabalho, um lava-jato. Confessou que foi visitado por policiais federais estadunidenses quando do episódio do 11 de Setembro e de como fez uma doação indecente à campanha eleitoral de Obama para que o deixassem em paz um pouco.

Bob, cujo nome real era Babak, mudou minha vida: influenciou minhas leituras, incentivou-me a estudar mais, fez com que eu questionasse minha realidade e as certezas que tinha.

O lado positivo é que não foi o único a me fazer reconsiderar o mundo.

Passemos à Figura! Uma Figura! 2.

 

Natasha de Pina

Sou carioca e curiosa que só! Entre letras e quilômetros, vou escrevendo a vida.

Um comentário em “Figura! Uma Figura!

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