Mulheres Viajantes: Sozinha ~ Julia Landgraf

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Yoga em frente ao Taj Mahal

Jaisalmer, Índia. Caminhando pelo interior de um forte em Jaisalmer, na Índia, eu paro para observar um templo. Da religião jainista, não sei por quê, eram sempre os que mais me atraíam. Peço para entrar, mas já estava fechado; precisaria retornar amanhã se quisesse conhecer seu interior. O homem que respondeu às minhas perguntas era na verdade apenas um transeunte, dono de um café e morador da região. Ele logo cumprimenta uma estrangeira que passa ao redor, e me explica que também é professor de hindi. Me convida para um chai em seu café, e ah, por que não? Subimos pro terraço do café, onde alguns turistas almoçam. O sol está castigando. Sentamos e começamos a bater papo, sobre qualquer coisa que possa surgir. Esse moço indiano começa a me contar sobre como nasceu aqui, perto da cidade, e conhece muito bem a região. Que nós, turistas, queremos conhecer tudo de uma vez só, então não nos permitimos ficar mais tempo em um só lugar e nos aprofundar na cultura. Touché. A retórica dele é boa, e é fácil sentir que esse papo já saiu da boca dele algumas centenas de vezes. Mas, sabe como é, ele foi com a minha cara, já gostou de mim assim ó, de primeira! Um tanto quanto divertida pela situação, querendo ver até onde ele vai, entro no papo dele. Que, por sinal, tem uma casa no campo aqui perto, sabia? Muito linda. Ele tinha uma amiga japonesa que foi lá conhecer o lugar. Ah, quer dizer então que ele é confiável! Outras viajantes já confiaram nele. Eles viajaram juntos por algumas semanas, e quando ela foi embora, estava muito feliz por ter dado uma chance à cidade e à cultura; muito grata pela presença desse indiano-salvador-da-pátria na sua viagem. Show de bol!. Espero o touchdown a qualquer momento. Sabe, eu tenho uma moto, posso viajar pela Índia com você, diz ele. Ah, que gentil! Seguro o riso. Sabendo que eu sou instrutora de yoga, ele ainda fala algo sobre realinhar meus chakras e blábláblá – chaveco espiritual, o mais utilizado na Índia! Me diz para pensar, dar uma chance para essa possibilidade. Podemos viajar juntos – só como amigos, claro! – e eu não vou me arrepender. A casa de campo dele estará sempre aberta para mim. Agradeço, concordo com tudo, e com muita seriedade, digo que vou pensar sobre isso durante a noite e volto amanhã pra conversar com ele.

Não volto nunca mais.

Intuição e jogo de cintura. Reconhecer o que o outro espera de ti. Se ele me parecesse perigoso de qualquer forma, teria dado o fora antes; como não foi o caso, deixei que ele levasse a história até onde quisesse.

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Com o casal recém-casado no Nepal

Próxima à fronteira, Nepal. Estou dentro de um ônibus, que vai da fronteira do Nepal até a minha cidade de destino, onde pretendo chegar numa fazenda para voluntariar. O cenário é de crise: pós terremoto e em situação política instável com a Índia, o país vizinho não está permitindo que combustível cruze a fronteira. Como resultado, qualquer forma de locomoção (seja para gringos ou locais) foi muito dificultada. Depois de conseguir um ônibus, observo pela janela as horas transcorrendo e o sol se pondo. Fica escuro. A cidade para onde vou não é muito turística, e me pergunto quão fácil será encontrar um lugar para ficar (rapidamente sendo obrigada a modificar meus planos iniciais de chegar à qualquer lugar mais distante que o centro da cidade). Começo a conversar com a nepalesa sentada ao meu lado. Falamos sobre família, cultura, faculdade. Ela estuda arquitetura em Katmandu e está indo visitar a família no final de semana. Eu conto que estou indo para uma fazenda trabalhar, mas que o último ônibus saía há uma hora atrás, por isso precisaria dormir uma noite na cidade. Ela parece pensativa por alguns instantes, aí me convida: “dorme na casa da minha tia hoje. Se tu não te importar, claro, que ela é num vilarejo um pouco distante do centro”. Uma hora depois, eu estou sentada em uma moto com mais duas pessoas (minha nova amiga e seu tio) e três mochilas, dirigindo por estradas desertas, de noite, indo para sei lá onde. Sentindo o vendo no meu rosto e a adrenalina do fluxo, de estar entregue à situação. A noite na casa dessa família se tornou três. Acordei todos os dias com ao menos quatro crianças do vilarejo sentadas na cama ao lado da minha, só me esperando acordar. Comi a comida da família, conheci os locais de trabalho da família, conheci um pouco da realidade nepalesa em tempos de crise. Fui convidada para um casamento e, muito além disso, fui arrumada por pelo menos 10 mulheres do vilarejo que me emprestaram um saree (a vestimenta tradicional) e ajustaram ele para que coubesse em mim; recebi maquiagem e acessórios condizentes com o evento; comi na cerimônia como se não houvesse amanhã; dancei músicas tradicionais nepalesas no meio da rua enquanto todo mundo ria de mim porque meu deus como é difícil dançar desse jeito. Quando finalmente fui embora, fui com pedidos: nunca esquece da gente, tá?

E como eu poderia?

 

Viajar sozinha pela Ásia para muitos não parece a ideia mais sensata do mundo. Pela Índia, especificamente, pode inclusive parecer um atestado de loucura (o quê? Novinha desse jeito? Mulher? E sozinha?). Repasso mentalmente os diversos questionamentos que chegaram até mim antes de embarcar nessa jornada. Não foram poucos. Mas bem, com alguma proeza, fui capaz de convencer a todos de que estaria segura (ou de que eu era cabeça dura o suficiente para ir mesmo que eles não acreditassem nisso – pensando bem, talvez tenha sido a segunda opção).

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A vista do meu hostel, de frente ao forte de Jodhpur

Como se preparar para algo que você nem sabe o que é? Os possíveis perigos serão jogados na sua cara rapidamente quando você relata aos outros o que pretende fazer, pode ter certeza. Você pode estar convicta de que a viagem será segura (e, honestamente falando, provavelmente há menos chances de algo acontecer comigo sozinha pelas ruas da Índia durante o dia do que pelas ruas de Porto Alegre), mas a ideia foi plantada, disseminada na minha mente, e eu começo a me questionar: talvez realmente seja perigoso. Talvez eu esteja sendo insensata. Talvez eu deva guardar essa viagem pra outro momento, quando alguém puder me acompanhar. Será?

 

PÁRA TUDO! Respira, moça. Eu sei que teu desejo é ir, e eu sei também que isso pode te dar medo. É coerente! Mas você sabe que outras mulheres já fizeram isso antes de você, né?

(Prazer, meu nome é Julia.)

E você acha que pra isso é necessário ser uma mulher muito forte e independente – só não tem certeza da sua capacidade para encarar isso nesse momento.

(Você nem faz ideia do quanto é forte…)

Pois quando eu comecei a viajar sozinha, todo mundo passou a comentar como eu era livre, independente e forte, o que me causou um belo estranhamento de início. Ué, nunca na vida alguém tinha me dito que eu era forte.

(Ok, vamos perceber como o problema da nossa socialização talvez comece exatamente aí.)

E, agora, do nada, o mundo me reconhece como uma mulher forte e inspiradora. Deixa eu te contar uma coisa. Você é forte e independente. Sério! Talvez você ainda não tenha percebido isso. Talvez nunca tenha tido a oportunidade de exercitar essas qualidades. Talvez tenha algo (principalmente fora de você) dizendo pra que tudo isso fique bem guardadinho em alguma gaveta fechada a sete chaves nas profundezas do seu ser. Mas você sabe que está lá.

As duas situações narradas inicialmente aconteceram comigo enquanto eu viajava sozinha. Tenho bastante convicção de que, especificamente nesses casos, se estivesse acompanhada os convites não teriam sido feitos. Em Jaisalmer, eu era uma oportunidade, uma gringa com cara de boba que poderia cair numa historinha. Talvez as intenções do rapaz fossem as melhores! Mas eu não ia me colocar nesse risco; decidi jogar o jogo dele para saber até onde aquela história dele iria (e aí passei a entender um pouco melhor qual é o jogo dos indianos que buscam atrair estrangeiras). No Nepal, se uma amiga estivesse sentada ao meu lado, teríamos parado em alguma hospedagem por aquela noite. Exatamente por estar sozinha, a empatia e a aproximação rolam com facilidade, e o convite para conhecer uma casa e uma família nepalesa foi extremamente natural (e veja só a experiência cultural gigantesca que isso me proporcionou).

Então pesquisa um pouquinho sobre a cultura daquele lugar que você quer conhecer – seja ele nosso país vizinho ou lá do outro lado do mundo. Faz uma mochilinha com umas roupas adequadas à essa realidade. Confia em ti mesma e na tua intuição (como eu fiz em Jaisalmer). Se a situação apertar, faz escândalo em lugar público! Confia que, por mais que realmente haja gente mal intencionada por aí, tem muitas pessoas de olho em ti; e, com um olhar de cuidado, e elas só querem que tudo transcorra bem.

Não deixa que o medo te mantenha em casa. Um mundo infinito se abre quando você se permite viajar sozinha e, além disso, percebe de tudo que é capaz.

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No rio Ganges

Autobio

Meu nome é Julia. No final de 2015, embarquei em um avião rumo à Índia, com o objetivo de mochilar por diferentes países da Ásia durante cinco meses. Fui sozinha. Agora que retornei, divido minhas experiências no blog Viaje por si para mostrar que se eu fiz, você também pode fazer. Não sou mais corajosa ou mais forte do que qualquer outra mulher – todas temos isso dentro de nós.

Quero ajudar a acender aquela faísca dentro de cada um que tem vontade de viajar mas por algum motivo acredita que não pode ou não consegue. Quero que todos possam viajar de forma autônoma e descobrir que, quando viajamos sozinhos, viajamos também por dentro de nós mesmos, em constante autodescobrimento.

Sigo viajando (sempre), e escrevo sobre culturas, impressões e perspectivas; simplesmente porque é o que me incendeia por dentro.

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